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Ética e direção do tratamento na psicanálise

Estas indagações nos conduzem a pensar a direção do tratamento articulada à ética da
psicanálise. A direção do tratamento, em diferentes casos e estruturas clínicas, não é sempre a
mesma. Contudo, mesmo com particularidades clínicas, existe um elemento que se mantém na
direção do tratamento: a ética. Iremos explorar aqui a relação entre ética, saber e sentido, de
forma a propor que um denominador comum da prática analítica é que esta transita por um
terreno em que verdade e saber estão descolados, o que implica – e requer – acolher o semsentido
como portador de uma verdade, seja na neurose, seja na psicose delirante, ou em casos que
fogem a estas duas estruturas. Segundo Iannini (2012), a verdade surge da equivocação, como
nos atos falhos, e do sem-sentido, como nos sonhos e nos chistes. Essa operação se contrapõe à
necessidade de compreensão e de explicação, vigente em algumas práticas psicológicas e, de
certa forma, demandada à psicanálise.
A ética guia a direção do tratamento desde o surgimento da prática psicanalítica. Freud,
ainda médico, voltou-se à escuta da fala de suas pacientes e daquilo que nem ele, nem elas,
sabiam sobre seus sintomas. Enquanto as afecções histéricas eram tratadas pelos médicos como
lesões funcionais (Allouch, 1995), sem um correlato biológico visível, ou como encenações
teatrais, produtos do fingimento de mulheres em busca de atenção, Freud começou a investigar
suas determinações psíquicas, utilizando principalmente a fala e a associação livre.
Contudo, no início de sua prática, o psicanalista recorreu à hipnose como ferramenta de
investigação dos conteúdos inconscientes, assim como considerava de extrema importância
recuperar memórias esquecidas, recorrendo a parentes e conhecidos em busca de comprovações
acerca de traumas infantis. Quando de posse dessas informações valiosas, ele apressava-se a
levar o conhecimento ao doente, visando dar um fim rápido ao tratamento. Contudo, o êxito
esperado não ocorria e a neurose não se dissolvia. Segundo Freud, sua postura, naquele momento, era intelectualista (Freud, 2010a/1913). O psicanalista percebe que o acesso a um

saber no nível consciente não era capaz de produzir o arrefecimento das resistências, o que o
leva a afirmar que quanto “a pôr a descoberto o que é inconsciente para o doente, essa técnica
não ajuda, apenas o torna ainda mais incapaz de superar resistências mais profundas” (Freud,
2010b/1912, p. 159). Segundo Freud, essa abordagem mal distinguia “entre o nosso saber e o
dele [paciente]” (Freud, 2010a/1913, p. 189), pois buscava que o conhecimento da determinação
dos sintomas, vindo de uma fonte externa – fosse esta lembranças da infância vindas dos pais
ou revelações colhidas durante o processo de hipnose , solucionasse os conflitos neuróticos.
Deixando de lado esse procedimento, o psicanalista se atém ao trabalho com a fala e
com as associações livres do paciente, de forma que a interpretação, quando pertinente, não vem
no lugar de um saber externo, o qual estaria no campo da sugestão. Existe uma tensão entre
saber e enigma que anima a psicanálise seja na incógnita que as histéricas representavam à
medicina, seja no deslocamento da própria técnica psicanalítica, que vai da sugestão e da
hipnose para a regra fundamental da associação livre. No momento em que o saber não dá conta
de recobrir determinado campo, aquele das manifestações inconscientes, a psicanálise surge ou
se aprimora, em um movimento contrário à estabilização de um conhecimento.

Nesse sentido, é interessante notar o fenômeno “Freud Explica”, referido por Kehl
(2002) como o apelo social, dirigido à psicanálise, por explicações sobre o psiquismo, o que,
contudo, vai na contramão da ética psicanalítica. Este apelo é efeito da difusão da psicanálise
nos mais variados meios sociais, algo possível graças à passagem do tempo, mais de cem anos
após a publicação da “A Interpretação dos Sonhos”. Contudo, ao invés de conceder as chaves
de compreensão da mente, como de certa forma lhe é demandado, a ética propriamente analítica
“convoca a palavra a trabalhar” (Kehl, 2002, p. 28), intervindo como perguntadora e
“expondo a fragilidade que existe sob a aparência das certezas estabelecidas” (Kehl, 2002, p.
28). Atualmente, vemos essas certezas difundirem-se sob a forma de diagnósticos que procuram
identificar sujeitos na tentativa de produzir um conhecimento que dê conta da totalidade do que
lhes acontece. A psicanálise, na contramão desse movimento, coloca o nãosaber no centro de
sua prática, ao mesmo tempo em que sustenta um saber do sujeito, em vias de ser produzido.
Kehl (2002) aponta nossa intolerância, enquanto seres humanos, aos aspectos da
existência vazios de sentido. Segundo a autora, o sentido não é um valor inerente à vida, mas
“efeito de uma construção discursiva que confere significado ao aleatório, ao sem sentido, à
precariedade da existência” (Kehl, 2002, p. 9). A depressão seria fruto da perda do sentido da
existência, e sua prevalência cada vez maior em nossa sociedade indica que a constituição de


sentidos socialmente compartilhados é cada vez mais escassa, pois o alcance de uma produção
de sentido é dependente de sua inscrição na cultura. Nas palavras de Kehl,

Assim como todo ato de fala só se consuma no endereçamento a um outro (até mesmo
quando se trata de um maluco “falando sozinho” na rua), toda produção de sentido, de
significação, depende de sua inscrição numa cadeia de interlocuções. Dizer que uma
vida faz sentido do ponto de vista do vivente significa que existe a possibilidade de esse
sentido ser reconhecido pelo Outro, ou pelos outros que o rodeiam. (Kehl, 2002, p. 9)
Não só temos dificuldade de tolerar os aspectos da existência vazios de sentido, como
precisamos constituir sentido na relação com o Outro. Essa interação entre discurso social e
sofrimento já era descrita por Lévi-Strauss (2017a/1949) em A Eficácia Simbólica. Neste
escrito, o antropólogo discorre sobre as implicações da eficácia simbólica na cura xamânica e
na psicanálise. A primeira consistiria em “tornar pensável uma situação dada inicialmente em
termos afetivos, e aceitáveis, pelo espírito, dores que o corpo se recusa a tolerar” (LéviStrauss,
2017a/1949, p. 197). A eficácia estaria garantida pela crença da paciente aliada à crença social
na realidade descrita pelo xamã. Contudo, a mitologia invocada pelo xamã para tornar
compreensíveis as dores incoerentes tem um efeito diverso do que ocorre “com nossos doentes
quando se lhes explica a causa de seus problemas invocando secreções, micróbios e vírus”
(Lévi-Strauss, 2017a/1949, p. 197). Lévi-Strauss formula a hipótese de que, enquanto a relação
entre micróbio e doença é externa ao espírito, a relação entre monstro e doença é interna, uma
relação entre símbolo e coisa simbolizada. O mito fornece uma linguagem capaz de formular
estados de outra maneira informuláveis e é nessa operação que reside o móvel da cura.
A psicanálise, de forma semelhante, também opera com mitos, contudo, estes são
individuais. Enquanto o xamã oferece um mito compartilhado pelo coletivo, o psicanalista, na
posição de ouvinte, auxilia na construção de um mito a partir de elementos advindos da história
do paciente. Com Lacan, podemos acrescentar que, além de propiciar a formulação de estados
a princípio informuláveis – os quais ganham existência a partir de sua nomeação, apesar do
efeito de a posteriori, que dá a impressão de que “sempre foi assim” -, a psicanálise atua na
desconstrução ou no deslocamento de elementos desse mito, visando à ampliação das
possibilidades de nomeação.

Desta forma, lidamos, desde os tempos de Freud, com uma tensão entre o saber e o não-
saber, relativa ao psiquismo. Ironicamente, à medida em que se constroem mais nomenclaturas

e classificações responsáveis por difundir certo conhecimento sobre adoecimento mental, temos
um efeito de esvaziamento dos sentidos que emanam das singularidades dos sujeitos


identificados com seus diagnósticos. Atribuir um nome a um estado de tristeza profunda não
tem a mesma função que narrar uma jornada mítica para auxiliar no processo de parto. Talvez
a diferença, como pontua Lévi-Strauss, seja que a relação causal evocada pela medicina é
externa ao espírito, enquanto a relação entre narrativa e concepção de doença dos xamãs é
interna. Na psicanálise, cuja premissa ética é orientada pela verdade, a produção de sentido
situa-se, na maioria dos casos, do lado do paciente, pois seu objetivo, mais do que conceder
uma explicação, é sustentar um saber em vias de ser produzido. Uma posição ativa de não-saber
permite esse movimento entre saber e verdade, que se alterna, na medida em que, logo após o
surgimento da verdade, ela se transforma em saber. Contudo, nem sempre o que se recolhe de
um processo de análise é da ordem da compreensão, assim como Freud percebeu, com a
hipnose, que a recepção de um conhecimento consciente não era capaz de dissolver os sintomas.
No momento em que lida com o inconsciente, a psicanálise se compromete a acolher
justamente o que resiste à estabilização do saber. Freud é levado a escutar sonhos, atos falhos,
chistes e esquecimentos aparentemente desprovidos de sentido. Nestes “erros”, ele encontra
uma porta para o inconsciente, onde o princípio de contradição não existe, deslocamentos e
condensações são a regra e o tempo perde sua linearidade. Também é importante notar que os
grandes casos descritos pelo psicanalista são casos de análises que não “deram certo”, se
tomamos por termômetro de sucesso a dissolução dos sintomas. O conflito e o impasse são
inerentes às produções inconscientes, de forma que a psicanálise, tratando destas manifestações,
não pode buscar ou esperar uma adequação social do sujeito que, a partir de então, estará curado
de suas pulsões.


Mas, então, ao que se propõe uma análise? Esta não é uma pergunta fácil de responder,
e sua elaboração aprofundada exigiria um trabalho à parte. Contudo, podemos esboçar algumas
linhas gerais relativas à posição de escuta esperada de um analista, o que faremos na companhia
de Lacan. Em seu texto, “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1998b/1961),
o psicanalista francês elenca alguns pontos que caracterizam uma análise, na tentativa de
responder à pergunta sobre sua direção. Estes pontos são:

1. Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento;
2. Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o
discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso;
3. Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar;
4. Que a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise,
estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma;

5. Que, não sendo colocado nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o
sujeito é dirigido e até canalizado;
6. Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode ater-se aqui a
nada além da incompatibilidade do desejo com a fala. (Lacan, 1998/1961, p.647)
Lacan se dirige, aqui, à comunidade de analistas e tenta delimitar algumas balizas para
uma posição de escuta. Desde o início de seu retorno a Freud, o psicanalista retoma a
importância das formações de linguagem, propondo a primazia do significante sobre o
significado. A fala, na sua concepção, tem todos os poderes do tratamento, pois é na linguagem
que encontramos o material de trabalho, com suas metáforas e metonímias, e, também, nos
casos de psicose, neologismos e ritornelos. Lacan se opôs a concepções psicanalíticas que
privilegiavam o afeto e buscavam a integração do ego, possível graças à identificação do ego
fraco do paciente ao ego forte do analista.


O psicanalista francês busca se afastar ao máximo de uma direção normativa, tanto que
afirma não dirigir o sujeito nem para a fala plena, nem para o discurso coerente. Apesar disso,
não podemos dizer que o fazer analítico é desprovido de direção. O próprio ato de não dirigir a
fala do paciente carrega alguns princípios, os quais direcionam o trabalho. Um deles é que o
cerne da ação analítica é o ato da fala e este ato não se inscreve no registro da compreensão
daquele que escuta. Segundo Lacan, a compreensão pode ser uma armadilha perigosa, pois não
raro “mais vale não compreender para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem
que disto resulte o menor pensamento”. (Lacan, 1998b/1961, p. 621) Enquanto no discurso
comum, cotidiano, a falta de compreensão não impediria uma resposta do interlocutor, na
análise, Lacan sugere o silêncio do analista, que frustra tanto aquele que fala quanto aquele que
escuta. Ele se esquiva da demanda do analisando, pois este

sabe muito bem que isso seriam apenas palavras. Tais como as recebe de quem quiser.
Ele nem tem certeza de que me seria grato pelas boas palavras, muito menos pelas ruins.
Essas palavras não são o que ele me pede. Ele me pede… pelo fato de que fala:
sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto. (Lacan, 1998/1961, p. 623)
A defesa lacaniana da não compreensão do analista se alia a um dos propósitos da
análise, desenvolvido principalmente nos primeiros anos do ensino de Lacan: a dissolução do
Eu, ou, em outras palavras, a dissolução do imaginário. Fundado a partir da alienação à imagem
do semelhante, o Eu é fonte de desconhecimento, pois, para se formar enquanto uno e autônomo,
separa-se das suas próprias condições de constituição. Concebendo o desejo como puro e
desprovido de objeto, uma análise, ao subjetivar a falta constituinte do desejo, teria como função


mostrar como tais imagens, às quais o sujeito se vinculou, eram a maneira desesperada
de dar forma a um desejo fundamentalmente opaco […], maneira de se defender dessa
indeterminação angustiante fundamental que faz com que todo vínculo à imagem seja
frágil. (Safatle, 2017, p. 41)
A dissolução do Eu permitiria, então, o reconhecimento intersubjetivo do desejo,
concebido como negatividade, e, para concluir tal propósito, é necessário que o analista se porte
como um espelho vazio, que “permite a projeção dessas imagens no interior da relação
analítica” (Safatle, 2017, p. 40). Ou seja, o imaginário do analista, com suas ideias do que é
certo ou errado, do que é normal e do que foge da curva, devem ficar de fora da relação analítica,
assim como uma possível resposta ou conselho sobre o que se deve fazer, embasada no que se
compreende, ou se imagina, daquilo que o outro falou. Como afirma o ditado popular: se
conselho fosse bom, ninguém dava de graça.
De acordo com os pontos elencados por Lacan, a liberdade concedida àquele que fala
levaria à declaração do desejo, a qual, contudo, resiste à fala. Vimos uma concepção do desejo
como pura negatividade, o que explicaria sua resistência a ser colocado em palavras. Contudo,
a partir de 1964, o desejo passa a ser articulado com o fantasma, que marca de forma
fundamental os modos de relação com o Outro. Segundo Safatle (2017), o fantasma é uma cena
imaginária “na qual o sujeito representa, a partir de primeiras experiências de satisfação, a
realização do seu desejo” (Safatle, 2017, p. 67). Como o desejo do sujeito se constitui a partir
do desejo do Outro, é desejo do desejo do Outro, o fantasma é uma resposta para a pergunta
sobre o que o Outro deseja, a qual defende o sujeito da angústia de não saber o que o Outro
quer. Essa cena imaginária fixa alguns objetos, que serão, desde então, causa do desejo do
sujeito.
Com esta constelação de conceitos, o desejo deixa de ser puro, passa a ser guiado pelo
objeto a, objeto causa do desejo, e o final de análise passa a estar vinculado à travessia do
fantasma. Esta travessia, na impossibilidade de dissolver os vínculos do sujeito aos objetos que
causam seu desejo, modifica o sentido destes vínculos “permitindo assim que eles sustentem
experiências que não se reduzam à repetição modular de fantasmas” (Safatle, 2017, pp. 69-70).
O objeto a deixa de conformar a experiência aos moldes fantasmáticos e se torna “o núcleo de
uma experiência radical de descentramento” (Safatle, 2017, p. 70). Isso nos leva, novamente, à
uma experiência de indeterminação que resiste à fala, contudo, é uma experiência com alguns
pontos de fixação. O reconhecimento se dará, portanto, entre um sujeito e um objeto, “que o
constitui ao mesmo tempo que lhe escapa” (Safatle, 2017, p. 80). A direção da análise guia o


sujeito, neurótico, para uma experiência de desidentidade, sustentando o princípio ético de que
“o sujeito só é sujeito quando é capaz de experimentar, em si mesmo, algo que o ultrapassa,
algo que faz com que ele nunca seja totalmente idêntico a si mesmo” (Safatle, 2017, p. 80).
Segundo Kehl (2001), a cura em psicanálise passa por uma identificação do sujeito com
o seu sintoma, o que lhe permite certa liberdade criativa. O sintoma sempre representará algo
do desejo que escapa ao sujeito, apesar de fazer parte dele. A aposta é que a “cura analítica
permite que ele faça disso, que a ele sempre retorna e dele sempre escapa, alguma outra coisa
além da banalidade da repetição sintomática” (Kehl, 2001, p. 37). Esse movimento é possível a
partir de uma operação de simbolização da castração, a qual faz o sujeito abandonar “a pretensão
neurótica de tudo saber e tudo dizer sobre si” (Kehl, 2001, p. 89). Neste sentido, o trabalho
analítico atua na desconstrução dos sujeitos modernos, do Eu concebido como uno e crente da
autoria autônoma de seu romance individual. De forma semelhante, Safatle interpreta o
imperativo ético lacaniano de “não ceder em seu desejo” como “a exigência de se confrontar
com que aparece como ‘inumano’ no interior do desejo, como desprovido da imagem identitária
do homem” (Safatle, 2017, p. 87) Esta ética é o que guia as intervenções para o trabalho com
os atos falhos, sonhos, chistes e esquecimentos, pois este trabalho inclui, como parte do sujeito,
uma experiência onde, a princípio, ele não se reconhece, mas a qual porta uma verdade sobre o
seu desejo, que difere da imagem identitária do Eu.
Contudo, este trabalho de desconstrução não é a direção em todos os casos. Quando
lidamos com a clínica das psicoses, alguns pontos centrais da direção do tratamento se mantêm,
enquanto que os propósitos de dissolução do Eu e de travessia do fantasma, buscando uma
experiência radical de descentramento, não. A fala, com suas formações de linguagem, segue
tendo “todos os poderes” do tratamento e, inclusive, Lacan enfatiza no seminário As psicoses,
como só é possível trabalhar com essa estrutura clínica atendo-se aos fenômenos de linguagem.

O único modo de abordar conforme à descoberta freudiana é o de pôr a questão no
próprio registro em que o fenômeno nos aparece, isto é, no da fala. É o registro da fala
que cria toda a riqueza da fenomenologia da psicose, é aí que vemos todos os seus
aspectos, as suas decomposições, as suas refrações. A alucinação verbal, que é aí
fundamental, é justamente um dos fenômenos mais problemáticos da fala. (Lacan,
1988/1955-1956, p. 48)
Segundo Lacan, a linguagem se articula de forma particular no discurso delirante,
principalmente em relação a duas formações específicas: os neologismos e os ritornelos. No


caso dos neologismos, a significação – que comumente sempre remete a outra significação,
sustentando-se em uma rede de significantes – remete apenas a si mesma, e, nesse movimento,
“remete antes de mais nada à significação enquanto tal” (Lacan, 1988/1955-1956, p. 44), a algo
de inefável na linguagem. Por outro lado, o ritornelo é uma fórmula que se repete e se repisa
estereotipicamente, sem remeter a mais nada. São duas formas da palavra que “param a
significação”, atuam como “uma espécie de chumbo na malha, na rede do discurso do sujeito”
(Lacan, 1988/1955-1956, p. 45).
Lacan retoma uma questão esvaziada pela psiquiatria referente aos sentidos produzidos
pelos sujeitos psicóticos (Neves & Santos, 2017). A contribuição da psicanálise no campo da
saúde mental permite-nos restituir, de certa forma, o sentido na cadeia dos fenômenos da
doença, contudo, “o que é falso, é conceber que o sentido de que se trata é aquele que se
compreende” (Lacan, 1988/1955-1956, p. 14). Não é preciso que a cadeia de fenômenos “faça
sentido” dentro de um raciocínio neurótico para que ela porte uma verdade que diz sobre como
se organiza aquela estrutura psíquica e sobre aquele sujeito. Também não se trata de adequar o
psicótico às normas sociais vigentes. O esforço de Lacan “foi fazer da psicose uma questão de
sujeito” (Neves & Santos, 2017, p. 264), respeitando a singularidade das produções delirantes
e atentando para o seu lugar enunciativo, acolhendo o que é da ordem do insensato. Nas palavras
de Lacan, “Por que então, condenar de antemão à caducidade o que se externa de um sujeito
que se presume estar na ordem do insensato, mas cujo testemunho é mais singular, e mesmo
inteiramente original?” (Lacan, 1988/1955-1956, p. 243)
Desta forma, os pontos elencados por ele em “A direção do tratamento e os princípios
de seu poder” (1998b/1961) se mantêm. A fala possui todos poderes do tratamento; não
procuramos responder à demanda do paciente; não o dirigimos para uma forma “correta” de
discurso; o deixamos livre para que se dirija à enunciação do seu desejo; um desejo que “só
pode ser tomado ao pé da letra” (Lacan, 1998/1961, p. 648), nas manifestações de linguagem.
Contudo, a psicose pode ser pensada como um rompimento do eu com o mundo externo,
o qual exige uma reconstrução do mundo externo passível de ser realizada pelo trabalho do
delírio (Freud, 2011b/1924), ou como um desencadeamento que implica um rasgo na tessitura
significante (Madeira & Moschen, 2017). Madeira e Moschen propõem a noção de tessitura,
“caracterizada pela composição de articulações significantes” (Madeira & Moschen, 2017, p.
397). Segundo eles, o desencadeamento está vinculado a pontos em que o estofo simbólico foi
desfeito, os quais podem ser (re)costurados a partir de algumas operações clínicas. Algumas das
malhas fundamentais para o funcionamento da estrutura sincrônica, característica da metáfora,


que teriam se desamarrado durante o desencadeamento e precisariam ser (re)costuradas, podem
dizer respeito à morte, ao sexo, ao corpo, à alteridade e à procriação.
Lacan descreve algumas operações clínicas que permitem diferentes soluções para a
psicose. Falaremos aqui da estabilização, da compensação e da suplência. A estabilização é
efeito de uma mudança estrutural, que pode ser alcançada, por exemplo, através da metáfora
delirante. Já a compensação é imaginária. Foi apontada, por Lacan, no caso de Joyce em sua
identificação à figura de “o artista”. Além dela temos a noção de suplência, a qual permite, no
esquema do nó borromeu, a função de uma amarração aos três registros, apesar da ausência do
nome-do-pai.
A partir desses operadores clínicos, temos uma direção para o tratamento que se
diferencia muito da dissolução do Eu e da travessia do fantasma, enquanto experiência radical
de descentramento. A dissolução imaginária é abordada por Lacan no caso Schreber como efeito
do “crepúsculo do mundo”, período em que as alucinações e os delírios começaram, lançando
o juiz alemão na angústia de uma realidade indistinta e ameaçadora. Há um efeito de
despedaçamento do presidente Schreber nesse período, tanto de si quanto do outro, seu
semelhante. Schreber tem em determinado momento a revelação de que havia morrido e de que
sua morte tinha sido anunciada nos jornais. Apesar disso, ele ainda se considerava vivo, como
um outro, menos dotado que o anterior, mas ainda o mesmo. “Ele é um outro. Mas ainda assim
o mesmo, que se lembra do outro. Essa fragmentação da identidade marca com seu próprio selo
toda a relação de Schreber com os seus semelhantes no plano imaginário” (Lacan, 1988/1955-
1956, p. 119).
A dissolução do Eu, nesse caso, é fonte de sofrimento, o que nos lança na busca de
alguma estabilidade para as formações imaginárias. Esta estabilidade “da imagem nas relações
interhumanas” (Lacan, 1988/1955-1956, p. 121) pode ser obtida quando o imaginário e o real
articulam-se com o simbólico. Lacan evoca, então, os astros, enquanto representantes do real
recoberto pelo simbólico. Os elementos do real, cuja característica é serem encontrados sempre
no mesmo lugar, exigem um trabalho de simbolização, que está presente em todas as culturas.
A noção de realidade para Lacan, distinta do real, é composta por uma trama onde a articulação
com o simbólico e o imaginário tem papel fundamental. Os astros, como elementos que se
encontram sempre no mesmo lugar e, ao longo dos anos, são nomeados, compondo uma rede
de significações, representam a consistência dessa realidade, que de nenhuma forma é natural.
O trabalho analítico na psicose buscará propiciar alguma forma de tessitura das
constelações significantes rompidas ou inconsistentes. Dessa maneira, é um trabalho que se


coloca mais ao lado da costura do que do corte. Lacan (1988/1955-1956) nomeia a função do
analista diante da psicose de “secretário do alienado”. Nas suas palavras,

Empregam habitualmente essa expressão para censurar a impotência dos seus alienistas.
Pois bem, não só nos passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o
que ele nos conta – o que até aqui foi considerado como coisa a ser evitada. (Lacan,
1988/1955-1956, p. 241)
Lacan se dispõe, quando diante de um sujeito psicótico, a uma escuta que dispensa as
interpretações e o lugar de suposto saber do analista, o qual se encontra, então, na posição de
testemunha e suporte do advento do sujeito (Neves & Santos, 2017). Segundo Neves e Santos
(2017), o psicótico pode conseguir sair do lugar de objeto diante do Outro a partir de “um efetivo
movimento clínico de atenção e suporte a esse advento, de valorização da produção ativa de
sentido diante do Outro, aliás, de um des-sentido particular ao próprio sujeito e sem exigência
de significação” (Neves & Santos, 2017, p. 264).
A posição ética de não-saber sobre o outro persiste, seja na clínica das neuroses, seja na
clínica das psicoses, um não-saber que sustenta uma produção do sujeito, do seu lugar de
enunciação, sem ficar presa a um sentido pré-determinado que permitiria analisar e classificar
suas manifestações. Pelo contrário, a análise suporta o sem-sentido, nomeado também como
“discurso insensato” ou “des-sentido”, pois ali é onde pode se encontrar uma manifestação do
sujeito e da verdade.
Desta forma, podemos retornar à pergunta que deu ensejo a esta elaboração sobre ética
e direção do tratamento: como pensar esses dois operadores na escuta de um sujeito que fala,
mas raramente em nome próprio? Como pensá-los em um caso que não se situa na neurose nem
na psicose delirante, um caso onde existe uma escassa produção de palavras? O que fazer
quando o discurso se desdobra sem futuro ou passado imperfeito, sem o tempo do era (uma
vez)?

Este material sobre: Ética e direção do tratamento na psicanálise, foi escrito por Saulo José Veríssimo, formado no nosso  Curso Livre de Doutorado em psicanálise.

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